quarta-feira, 1 de abril de 2009

A Bíblia na vida, hoje. A partir do Assentamento Pastorinhas e da Ocupação Dandara

Delze dos Santos Laureano(1)

Para início de conversa

Nada sei da Bíblia além do que aprendi nas interpretações em celebrações eucarísticas na Igreja do Carmo, em Belo Horizonte, ou nas leituras meditativas que faço sozinha, ou em pequenos grupos nos momentos de oração. O que me leva a uma busca incansável da compreensão do sentido dos textos bíblicos é a paixão pela interpretação mesma e a mania de filosofar, talvez a melhor herança que recebi do meu pai, um homem do campo com nome de profeta, Joel. É certo que mesmo sabendo, conforme disse Manoel de Barros, que “compreendo sempre o que faço, depois que já fiz”, acompanha-me o desejo de buscar algo para além da experiência concreta e imediata dos fatos. Cultivo em mim uma sede de transcendência, a certeza da presença de Deus/amor na nossa vida, o que nos torna capazes de sermos mais do que a aparente fragilidade humana. E isso, percebo, se dá exatamente quando as pessoas agem coletivamente de forma organizada a partir de uma fé libertadora. Essa a minha experiência com a leitura da Bíblia.
Como advogada de movimentos sociais por diversas vezes tive a sensação de estar vivendo a experiência já vivida e contada nos textos bíblicos. Esta percepção me ajuda a descobrir novos modos para a conquista de direitos sociais e a esperança de dias melhores para a nossa sociedade com os marginalizados na nossa sociedade e a partir deles.

2) Um dia o sol não se pôs no Município de Brumadinho

A primeira experiência que tive do texto vivo da Bíblia foi no Assentamento Pastorinhas, em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, MG. A área está hoje destinada ao assentamento de trabalhadoras/res da reforma agrária pelo INCRA. Conhecendo a história daquelas famílias e a sua luta obstinada por um pedaço de terra descobri o sentido de certa passagem do livro de Josué (Capítulo 10,12-14) . Após várias tentativas infrutíferas de conseguir, via burocrática, uma área para o assentamento, mais de 100 famílias de trabalhadores rurais sem-terra resolveram ocupar propriedades rurais abandonadas na região. Todavia, as famílias eram sempre retiradas da terra ocupada, após o pedido de reintegração de posse na justiça. Às vezes, antes mesmo de entrar na área eram impedidas pela polícia que, de alguma forma, tomava conhecimento das suas intenções. Aprendendo com essas experiências, as lideranças descobriram que era preciso manter sigilo absoluto acerca da gleba a ser ocupada, até mesmo de algumas pessoas que estavam acampadas com elas na beira da rodovia. Era também primordial escolher bem o dia da ocupação, de modo a retardar ao máximo a chegada da decisão judicial de reintegração de posse.

E foi dessa forma, “sendo simples como as pombas, mas espertos como as serpentes”, com muita ousadia e organização que os trabalhadores conseguiram enfim ocupar na madrugada de véspera do feriado de Carnaval de 2001 uma fazenda de 158 hectares, há muito abandonada pelo antigo proprietário. A primeira parte do plano já tinha um bom resultado: a polícia não teve conhecimento prévio da ocupação. A segunda parte era dar efetividade à ocupação da terra antes que o proprietário pudesse obter na justiça a liminar de reintegração de posse. Deste modo, na mesma madrugada, as famílias, após acomodarem as crianças nos carros velhos que conseguiram para fazer o trajeto até a ocupação, empenharam-se, todas, no trabalho de aração e de semeadura dos 14 hectares de terra que encontraram apenas com monocultura do capim. Em apenas três dias, trabalhando dia e noite, conseguiram arar e plantar os 14 hectares de terra com verduras e legumes. Foi deste modo que o milagre aconteceu. Após o feriado, quando o juiz da Vara Agrária visitou o local para verificar a situação do imóvel ficou emocionado com o que viu. Verduras e legumes já estavam brotando por todos os lados. A terra já estava cultivada e o imóvel cumprindo a sua função social. A decisão do juiz culminou com a compra da área pelo INCRA.

Tudo ocorreu conforme o livro de Josué, só que desta vez em Brumadinho, no Estado de Minas Gerais. “O sol se deteve e a lua ficou parada, até que o povo se vingou dos seus inimigos.” Vingaram mesmo foram as plantas, semeadas ligeiras por aquelas/es trabalhador/res. Vingar para as plantas não significa matar, fazer o mal, significa viver, sobreviver, superar as forças da morte. Vingar dos seus inimigos para aquelas/es trabalhadoras/res Sem Terra significou fazer da terra o que o antigo proprietário não foi capaz ou não quis fazer. E como prossegue o texto do livro de Josué, “nem antes, nem depois, houve um dia como esse, quando Javé obedeceu a voz de um homem.” Naquele dia, o Deus da vida ouviu foi o clamor das mulheres, as lideranças do Assentamento Pastorinhas, que cansadas de ver faltar o alimento na mesa, mandaram o sol se deter no céu para que a noite (que seria a expulsão daquela terra que não cumpria sua função social) não viesse antes de ser toda a terra plantada. Com a luz do dia, e sendo luz de Deus, as pastorinhas, em mutirão, prepararam a terra e semearam não apenas sementes de verduras, mas sementes de uma vida com mais luz, dignidade. Assim, impediram que a noite da opressão anterior se repetisse. Enquanto milhares buscavam alegria e luz no Carnaval, 22 famílias, na luta, plantaram na terra sementes que tem lhes dado dignidade, alegria e luz para todos.

3) Haverá um novo céu e uma nova terra de Dandara

Dandara, a mulher, ontem foi uma guerreira companheira do líder Zumbi dos Palmares. Como Zumbi preferiu a morte à escravidão. Vivendo livre em uma terra com os seus irmãos ex-escravos não se submeteu aos interesses dos grandes proprietários de terra, que dos negros só queriam a força de trabalho, o suor e o sangue. Desapareceu deste mundo quando desapareceu Palmares, a república negra da Serra da Barriga em Alagoas, nas terras Brasil.
A Dandara de hoje, uma comunidade, é a ocupação de famílias de trabalhadores urbanos e rurais ocorrida neste ano de 2009, na Quinta-feira Santa, no bairro Céu Azul,região da Pampulha, em Belo Horizonte. No primeiro momento, aqueles trabalhadores, cansados de serem enxotados que nem cão vadio, de um lado para outro, só tendo a moradia de favor ou de aluguel em barracos de favelas e áreas de risco, entenderam que somente se organizando seriam capazes de conquistar o direito à moradia e o direito a uma vida digna.

Naquela madrugada, aproximadamente 130 famílias de sem-casa e Sem Terra cortaram a cerca e entraram em um imóvel de 400.000 metros quadrados – 40 hectares -, completamente abandonado há mais de 3 décadas. Uma área de terreno já urbanizada na região metropolitana de Belo Horizonte. Pensavam estar entrando em uma área pública, reconhecidamente devoluta, e que, portanto, nos termos da lei, pertenceria ao Estado de Minas Gerais. Somente após raiar o sol ficaram sabendo que a área é reivindicada pela Construtora Modelo, que quer fazer no local mais um grande empreendimento imobiliário na capital mineira.
Mas o equívoco, em nada atrapalhou o intento daquelas famílias de trabalhadores marginalizados. A disposição de luta e a legitimidade de suas reivindicações mobilizaram diversas forças sociais de apoio e abrigou centenas de novas famílias que, atualmente, já somam mais de mil acampadas e mais 500 famílias em uma lista de espera. Todas essas pessoas descobriram uma unidade de luta que os identifica. E foi a partir desses acontecimentos que percebi a riqueza de outro texto bíblico: o livro do profeta Isaías (Capítulo 65,17-25), que narra a construção de um novo céu e de uma nova terra. O autor deste texto nos apresenta a realização do projeto de Deus: vida em abundância para todos e tudo, um mundo de paz, harmonia e alegria. Quem esteve lá e não sentiu esse projeto de Deus na Ocupação Dandara?

Aquelas famílias com coragem e disposição para a luta e para o trabalho mostraram na prática que é possível criar esse novo céu e essa nova terra. Já na Quinta-feira Santa, dezenas de lideranças das Brigadas Populares, do MST e do Fórum de Moradia do Barreiro “lavaram” os pés de centenas de famílias crucificadas na falta de reformas agrária e urbana. Partilharam o pão do sonho da casa própria conquistada na luta. Beberam o vinho amargo de resistir à truculência da tropa de choque que aterrorizou todos no acampamento, enquanto mundo afora nas igrejas cristãs celebrava-se a missa do lava-pés. Antes da Sexta-feira Santa, na comunidade Dandara, Jesus já havia ressuscitado. Ali brilhava, como no Natal, a estrela que guiou os magos para o encontro com Jesus de Nazaré.

O projeto revolucionário de Jesus não morreu na cruz. Ele está vivo em cada um/a dos que acreditam ser possível viver melhor. E viver melhor é caminhar junto nesta vida, com coragem e determinação, conspirando a construção de “outra terra e de outro céu’. Conforme já anunciou a irmã Rosário: estão todos ali caminhando seguindo bons pastores e boas pastoras.
E realmente, a Ocupação Dandara é o mais novo sinal de que Deus está criando ali pelas mãos e organização dos trabalhadores um novo céu e uma nova terra. Nada está pronto, mas está tudo em construção. “As coisas antigas nunca mais serão lembradas, nunca mais voltarão ao pensamento.” Por isso já estão todos alegres. Não haverá mais choro ou clamor. Lá, no Dandara, correm por todo lado as crianças, que não estão condenadas a morrer precocemente, de fome ou vítimas do tráfico de drogas. Tudo porque naquela terra serão plantados alimentos, serão construídas casas onde não haverá espaço para drogas e violência. A ordem ali é que crianças estudem e brinquem. Criança que brinca e estuda é projeto de cidadania. Famílias que vivem em comunidades são famílias de esperança.

Ali no Dandara, de forma organizada, trabalhadores e pessoas que têm compromisso com a vida, como no livro de Isaias, “construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer”, como sempre aconteceu no mundo em que viviam: pedreiros sem casa que sempre fazem casas luxuosas para outros morar. Ali, “a vida do povo será longa como as árvores.” Ninguém trabalhará inutilmente, ninguém gerará filhos para morrerem antes do tempo, porque todos serão a descendência dos abençoados de Javé.”

É bom que os lobos e os leões conheçam o que está no texto do profeta Isaías e venham aprender a se alimentar de todas essas belezas com o povo do Dandara, porque está escrito no texto sagrado que “ninguém causará danos ou estragos ali.” Olhem por toda parte naquela ocupação e ajoelhem-se diante do milagre de que são capazes os pobres. Vejam como podem construir com os restos dos ricos. As 1084 barracas são todas de pedaços descartados de construções, madeiras velhas, carpetes usados, plásticos e panos emendados. A partir do lixo de uns estão construindo um novo céu e uma nova terra. São capazes de plantar ao redor das barracas jardins - na terra dura ainda sem adubo -, porque a vida nasce em todos os lugares. São capazes de colocar dons e talentos a serviço de quem precisa. Quem já foi vigilante e prestou serviço militar, com muita alegria e dignidade, ajuda na segurança do acampamento. Quem é carpinteiro, além de construir o seu abrigo ajuda outras famílias a fazer as suas barracas. Unidos fizeram-se fortes para resistir à truculência da tropa de choque para esperar o milagre da suspensão da ordem de reintegração de posse pelo Tribunal de Justiça.

Tudo isso confirma o que temos anunciado há muito tempo: um mundo novo está sendo construído, com a graça de Deus e pelos pobres que irradiam a luz e a força divinas no mundo.
Quem tiver olhos para ver, veja lá e aqui: http://ocupacaodandara.blogspot.com

Belo Horizonte, 12 de maio de 2009.


[1] Advogada, professora de Direito Agrário na Escola Superior Dom Hélder Câmara, em Belo Horizonte, MG; Mestre em Direito Constitucional pela UFMG; Doutoranda em Direito Internacional Público pela PUC MINAS; Integrante da RENAP – Rede Nacional de Advogados Populares; E-mail: delzesantos@hotmail.com

[2] “Foi então que Josué falou a Iahweh, no dia em que Iahweh entregou os Amorreus aos israelitas. Disse Josué na presença de Israel: “Sol, detém-te em Gabaon, e tu, lua, no vale de Aialon!” E o sol se deteve e a lua ficou imóvel até que o povo se vingou dos seus inimigos. Não está isso escrito no livro do Justo? O sol ficou imóvel no meio do céu e atrasou o seu ocaso de quase um dia inteiro. Nunca houve dia semelhante, nem antes, nem depois, quando Iahweh obedeceu à voz de um homem. É que Iahweh combatia por Israel.”

[3] Optaram por plantar verduras e legumes, porque as crianças estavam desnutridas. Precisavam garantir o mais rápido possível alimentos de qualidade para salvar as crianças. Adubaram de forma orgânica, porque Valéria, uma das Pastorinhas, tinha se formado em Técnica Agrícola na Fundação Helena Antipoff, onde agroecologia é uma prioridade absoluta.

[4] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; www.mst.org.br